Um Novo Modelo de Justiça: Trabalhar para Reduzir a Pena?
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- 28 de out. de 2024
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No contexto do sistema prisional, uma questão permanece sem resposta clara: como podemos transformar a prisão numa verdadeira oportunidade de reabilitação? A ideia de incentivar presos a trabalhar em troca de uma redução de pena oferece uma resposta inovadora e prática a este dilema. Este conceito, já implementado noutros países, sugere que os reclusos possam reduzir o tempo que passam atrás das grades, se voluntariamente participarem em programas de trabalho comunitário ou projetos de infraestrutura. Mas será que isto poderia funcionar em Portugal? Quais são os prós e os contras de um modelo assim?
Uma Visão Global do Sistema
Em vários países, como os Estados Unidos, Brasil, Noruega, Índia e Austrália, programas de trabalho prisional têm mostrado que é possível dar uma nova vida a quem cumpre pena. Em vez de permanecerem inativos ou mergulhados num ciclo de desesperança, os presos são incentivados a participar em trabalhos úteis: construir estradas, manter parques, renovar edifícios públicos ou até aprender um ofício. Em troca, podem obter uma redução de pena, um benefício que se junta ao salário que recebem. Contudo, para que o sistema funcione, a participação deve ser voluntária e os reclusos sujeitos a uma seleção rigorosa, considerando o seu comportamento e risco.
Estrutura de Incentivos e Supervisão
A estrutura de incentivos é clara: por um determinado número de horas de trabalho, o recluso pode reduzir a sua sentença (por exemplo, 40 horas de trabalho resultariam numa semana a menos de pena). Para evitar abusos, o sistema limita o quanto uma pena pode ser reduzida através do trabalho, assegurando um equilíbrio justo entre o incentivo e a disciplina necessária para manter a ordem no sistema prisional.
A supervisão é igualmente rigorosa. As atividades são acompanhadas por guardas armados, treinados para garantir a segurança, tanto para os reclusos como para o público. Além disso, um organismo independente supervisiona a aplicação do programa, garantindo que todas as práticas são éticas e legais.
Casos de Sucesso Internacionais:
1. Estados Unidos – UNICOR
Nos EUA, a UNICOR, uma empresa estatal, oferece trabalho a reclusos que participam na produção de móveis, eletrónica e têxteis. Os resultados mostram que os participantes são 24% menos propensos a reincidir do que aqueles que não têm esta oportunidade. Em 2022, a UNICOR gerou 527 milhões de dólares em receitas, ajudando a reduzir os custos operacionais do sistema prisional. Mas nem tudo é perfeito: a crítica ao modelo aponta para os baixos salários, que variam entre 0,23 e 1,15 dólares por hora.
2. Brasil – Prisões APAC
No Brasil, as prisões geridas pela Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) são um exemplo de humanização no sistema prisional. Estas prisões têm uma taxa de reincidência de apenas 15%, comparada com a média nacional de 70%. Aqui, os custos por recluso são um terço dos das prisões tradicionais, e os programas são autossustentáveis, permitindo que os reclusos aprendam uma profissão enquanto cumprem pena.
3. Noruega – Prisão de Bastøy
Na Noruega, a prisão de Bastøy é famosa pela sua abordagem holística. Em Bastøy, os presos trabalham em atividades como a agricultura e a construção. A taxa de reincidência é de apenas 20%, uma das mais baixas do mundo, e estima-se que o país poupe 88 mil dólares por cada recluso que não reincida. Além disso, cerca de 76% dos noruegueses apoiam este modelo, vendo-o como uma alternativa mais humana às prisões convencionais.
Benefícios para a Sociedade e para os Reclusos
Saúde Mental
Programas de trabalho estruturados ajudam os reclusos a manter uma rotina, o que melhora significativamente o bem-estar mental. Estudos indicam que quem participa em trabalho prisional é 30% menos propenso a sofrer de depressão e ansiedade em comparação com os que ficam inativos.
Reabilitação e Integração Social
Trabalhar ajuda os presos a adquirir competências. Um estudo de 2020 mostrou que quem recebe formação profissional tem 43% mais hipóteses de encontrar emprego após a libertação. A experiência de países como o Brasil e a Noruega sugere que programas bem estruturados podem reduzir significativamente a reincidência, oferecendo uma nova oportunidade a quem quer reconstruir a vida.
Crescimento Económico
Os programas prisionais podem gerar receitas significativas. Nos EUA, a UNICOR gera mais de 500 milhões de dólares por ano, enquanto na Austrália o contributo económico é de 100 milhões. Este dinheiro ajuda a aliviar a carga dos contribuintes e reforça o desenvolvimento local.
Implementação em Portugal: Como e Porquê?
Portugal tem uma tradição de abordar a justiça com um foco na reabilitação. Desde a descriminalização do consumo de drogas, que provou ser uma política eficaz e visionária, o país mostrou que soluções humanas e progressistas podem funcionar. Aplicar um sistema de trabalho prisional com incentivos à redução de penas pode ser um próximo passo lógico.
Como poderia ser implementado?
Programas Piloto e Desenvolvimento de Competências
O governo português poderia começar com programas piloto em áreas com necessidade de mão de obra, como a construção, agricultura e manutenção de espaços públicos. Estes setores têm carência de trabalhadores qualificados e poderiam beneficiar de uma força de trabalho adicional. Para isso, o Estado poderia colaborar com empresas locais, oferecendo incentivos fiscais para encorajar parcerias.
Quadro Legal e Supervisão Independente
Portugal teria de estabelecer um quadro jurídico claro, que garanta uma compensação justa e a participação voluntária dos reclusos. Seria essencial um organismo independente que monitorizasse todas as operações, garantindo a transparência e a ética do sistema.
Integração Comunitária e Consciencialização
Colaborar com autarquias para envolver reclusos em projetos locais poderia criar uma imagem positiva do sistema e ajudar na integração dos ex-reclusos. Campanhas de consciencialização mostrariam à sociedade os benefícios do programa, ajudando a dissipar receios e preconceitos.
Desafios e Custos Potenciais
Risco de Exploração
Um sistema deste tipo, se mal gerido, pode transformar-se numa forma de exploração. Nos EUA, muitas vezes é criticado o pagamento insuficiente aos reclusos, o que levanta questões éticas. Portugal precisaria de um modelo que assegurasse a equidade, com salários justos e condições de trabalho adequadas.
Perceção Pública e Valores Culturais
Portugal valoriza a reabilitação, como se viu na abordagem progressista à droga. No entanto, a introdução de um sistema de trabalho prisional pode ser visto como um regresso ao trabalho forçado, se não houver uma comunicação clara e honesta. A aceitação pública dependerá da perceção de que o sistema é justo, voluntário e realmente benéfico para a reintegração dos reclusos.
Desafios Operacionais e Logísticos
Estabelecer programas de trabalho para centenas ou milhares de reclusos exige uma logística robusta. Desde o transporte e segurança até à organização de parcerias com empresas, tudo precisaria de uma coordenação meticulosa. Além disso, haveria a necessidade de equilibrar as necessidades do mercado laboral para evitar que trabalhadores locais sintam que os seus empregos estão a ser ocupados por mão de obra prisional barata.
Conclusão: Um Caminho a Seguir?
A ideia de um sistema prisional que incentive o trabalho como forma de reduzir a pena apresenta um potencial tremendo. Os exemplos internacionais mostram que é possível transformar vidas, reduzir a reincidência e até gerar benefícios económicos significativos para a sociedade. Contudo, implementar este modelo em Portugal exigiria um planeamento cuidadoso, um compromisso com a ética e uma comunicação eficaz para assegurar que os valores de dignidade, justiça e reabilitação continuem a ser centrais no sistema de justiça.
Se Portugal conseguir encontrar um equilíbrio justo e transparente, o sistema poderia ser uma extensão natural das políticas progressistas que já definem a abordagem do país à justiça social. Afinal, se acreditamos na reabilitação, não será hora de dar uma nova oportunidade a quem quer verdadeiramente mudar?
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